terça-feira, 5 de maio de 2009

Receituário de uma boa crítica

Algumas lições do professor Swift


Um simples diário de viagem. É coisa pouca de se levar como bagagem. Mesmo que em uma rima inexpressiva e incômoda se encontre com o pesado fardo da imaginação.

"Uma das mais debochadas e irônicas críticas é um diário de viagem! Como é possível em meio a tantas epopéias, a não sei quantos trovadores, a condições tão mais ilustrificadas da literatura sobressair-se um diário de viagem, e pior: um diário de bordo? Como fica nosso ilustre Morus?"

Pois é. Os críticos de literatura da Inglaterra do século XV usavam exclamações como estas para demonstrar sua indignação com Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift. Os irlandeses, conterrâneos do autor, só podiam uma coisa: rir-se.

Mas é preciso lembrar que trovadorismo é obra de menestréis populares, exatamente como hoje nos é ofertada a literatura de cordel do Nordeste, as quadras populares de Portugal, e como poderiam ser as infelizmente extintas quadrinhas de riso do Vale do Itapocu..., e que mesmo epopéias já foram simples cantigas populares. Outro detalhe: Morus, crítico sisudo do sistema econômico e político inglês, não usava de sua formação de advogado para fazer literatura, mas sim para fazer demonstrações retóricas, às vezes como transcrição de diálogos ocorridos na vida real.

Mas não é difícil ver que a reacção dos críticos ingleses a Swift seria a mesma de um brasileiro que lê o português europeu escrito ou a de um português ao ler a "última flor do Lácio, inculta e bela" americanizada.

Alguns trechos de Viagens de Gulliver, de Swift, para se poder entender a reação dos críticos.


Da política:

"Certo dia resolveu o imperador levar-me para assistir a um espetáculo muito divertido e apreciado em Lilipute, no qual realmente os habitantes lá são verdadeiros mestres.
A diversão, praticada somente pelos que pretendem altos cargos na corte, é a seguinte: dar pulos e saltos mortais equilibrando-se em uma corda bamba bem afastada do solo. Apesar de ser uma arte perigosíssima, pois, ante qualquer descuido, o infeliz despenca e pode quebrar os ossos, mesmo assim é praticada desde a juventude pelos liliputianos dotados de ambição.
Quando algum alto posto na corte fica vago por demissão ou morte de seu dono, apresentam-se imediatamente cinco ou seis ambiciosos ao imperador: estende-se então uma corda meio frouxa e um por um dança e pula até cansar. O que pular mais alto e fizer mais acrobacias sem cair obtém o cargo."


Das leis:

"Em Brobdingnag, nenhuma lei pode exceder em palavras o número de letras do alfabeto local, que são apenas vinte e duas. Escritas de forma clara e simples, não há perspicácia que consiga descobrir nelas mais de uma interpretação."

"[O rei de Brobdingnag sobre as Câmaras inglesas] - Tais lordes conhecem em profundidade as leis do país? Estão livres da avareza , da parcialidade e das necessidades? A meu ver, só assim resistirão ao suborno pelo qual são provavelmente tentados."


Da religião

"[Ainda o rei de Brobdingnag] Quanto aos santos varões de que falou - os bispos -, nunca serviram simplesmente aos interesses políticos de algum nobre ou foram tolerantes com as baixezas da aristocracia?"


Da ciência

"O primeiro desses sábios que visitei [na academia de Lagado] era magro, tinha cabelos e barbas compridos e desgrenhados, mãos sujas e roupa sapecada em vários pontos. Suas calças, camisa e pele eram todas da mesma cor.
Havia oito anos que estudava um projeto para extrair raios de sol dos pepinos.
'É assim - explicou-me, coçando vigorosamente a cabeça - : colocam-se os pepinos em redomas hermeticamente fechadas, mantendo-as no ar livre nos verões mais crus e abrasadores. Sinto a cada dia uma concentração maior de calor e não duvido de que, dentro de uns oito anos, poderei fornecer luz solar aos jardins do governador a um preço razoável.'"


Do comportamento

"[Gulliver explica a bebedeira para seu amo cavalo Houyhnhnm] Trazemos vinho dos outros países não porque nos falte água ou mesmo outras bebidas, e sim porque o vinho afasta as idéias tristes, tornando-nos alegres; produz mil fantasias no cérebro, expulsa nossos temores e fortalece a esperança, amortecendo o raciocínio até apagá-lo por completo durante algum tempo. Caímos então num sono profundo, do qual, é bem verdade, acordamos indispostos e desalentados. O uso continuado dessa bebida nos enche de doenças e torna nossa vida breve e incômoda".


E Viagens de Gulliver ainda é, para muitos, literatura infantil, ora essa!

2 comentários:

O repórter disse...

Caro,

Concordo quando dizes que não é literatura infantil. Na verdade, levou esta fama devido à primeira parte: a viagem para Lilliput (não sei bem se é assim que escreve). Aquela terrinha de seres menores como todo mundo conhece. Mas há outras três parte. Lembro-me bem a primeira vez que tu (Sidney)falaste no Gulliver e logo enfatizou: "não é literatura infantil". Os lugares que o livro mostra é a Inglaterra (o qual tenho ódio). Uma crítica à sociedade atual. Dependendo do subjetivo, podemos comparar com outros países.

Agora, a parte do "comportamento" (do vinho) gostei muito. Por isso, trago-te aqui algumas palavras do Baudelaire, pois na hora que li o texto já pensei nele.

"É preciso estar sempre embriagado. Eis aí tudo: é a única questão. Para não sentirdes o horrível fardo do Tempo que rompe os vossos ombros e vos inclina para o chão, é preciso embriagar-vos sem trégua.
Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa maneira. Mas embriagai-vos.
E se, alguma vez, nos degraus de um palácio, sobre a grama verde de um precipício, na solidão morna do vosso quarto, vós acordardes, a embriaguez já diminuída ou desaparecida, perguntai ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que foge, a tudo que geme, a tudo que anda, a tudo que canta, a tudo que fala, perguntai que horas são; e o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o relógio, responder-vos-ão: 'É hora de embriagar-vos! Para não serdes os escravos martirizados do Tempo, embriagai-vos: embriagai-vos sem cessar! De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa maneira'."

Claro, a questão de embriagar, com o que se embriagar, fica por conta de cada um. Não entrarei em detalhes, pois não quero causar polêmica.

Gajo, não perco livro de ninguém.

Inté

Sidney Azevedo disse...

Saudações!

Reza a lenda que o trecho de Lilipute (Lilliput, provável fusão entre "little" e "petit") foi refeito por sugestão do editor e amigo de Swift, o tipógrafo Faulkner, que considerou o trecho demasiado explícito e potencialmente perigoso para o escritor.

Outra história conta que o presidente do parlamento inglês entre 1780 e 1785, e também autor do Ato de União de 1800 (documento que unificou a Irlanda e o Reino Unido de Gales, Inglaterra e Escócia), teria autorizado a tradução do livro para outros países desde que "em palavras mais pueris".

Enfim, boatos ou não, o que acontece é que encontrei um link para quem quiser baixar o livro: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2202

Boa leitura a todos!