sexta-feira, 12 de junho de 2009

Já que não tenho aforismo...

Pensei seriamente em trazer um aforismo a este blogue, mas por raiva de mim próprio, insto em pôr um trecho de A náusea, de Jean-Paul Sartre, uma tentativa extremamente bem sucedida de mostrar que existencialismo não depende, necessariamente, de conceitos abstratos, e sim de sensações, que, sejam lá como forem interligadas, nos fazem conhecer a nós próprios e o pouco que resta a saber do mundo.

"Mas sucede que me aborreceram demais com esse tipo de coisa em minha juventude. No entanto eu não pertencia a uma família de profissionais. Mas existem também os amadores. São os secretários, os empregados de escritório, os comerciantes, os que ouvem os outros no café: sentem-se inflados, ao se aproximar dos quarenta anos, por uma experiência a que não podem dar vazão. Felizmente fizeram filhos e obrigam-nos a consumi-la ali mesmo. Gostariam de nos fazer acreditar que o passado deles não se perdeu, que suas recordações se condensaram, convertendo-se suavemente em Sabedoria. Cômodo passado! Passado de bolso, livreto dourado cheio de belas máximas."

Toda descrição é cínica. E tentar descrever o cinismo que essa revelação nos provoca é só um pouco menos cínico.

"'Acredite-me, estou falando por experiência, tudo o que sei foi a vida que me ensinou.' Teria a Vida se encarregado de pensar por eles? Explicam o novo pelo antigo - e o antigo, eles o explicaram pelos acontecimentos mais antigos ainda, como esses historiadores que fazem de Lênin um Robespierre russo e de Robespierre um Cromwell francês: no fim de contas, nunca entenderam nada de nada... Por trás de sua importância adivinha-se uma preguiça melancólica: vêem desfilar aparências, bocejam, acham que não há nada de novo no mundo. 'Um velho maluco' - e o Dr. Rogé pensava vagamente em outros velhos malucos, sem se lembrar de nenhum em particular. Agora, nada do que o Sr. Achille fizesse nos surpreenderia: já que é um velho maluco!"

Já que é um velho maluco. Já que. É uma expressão de definição. E arbitrária. Pois está na mão de outrem decidir o que será algo. E nos altera a percepção das coisas conforme queiramos. Dá-nos poder e no-lo tira, como se não existisse. Mas espanta que seja cínica na construção da verdade, a fazer dela algo, e não nos permitindo conhecê-la.

"Não é um velho maluco: tem medo. De que tem medo? Quando queremos entender alguma coisa, colocamo-nos diante dela, sozinhos, sem auxílio; todo o passado do mundo de nada adiantaria. E depois ela desaparece e o que pudemos entender desaparece com ela."

Medo de acertar os ponteiros... E só.

Um comentário:

Gisele Krama disse...

Esse modo de fazer o leitor experienciar a própria experiência do personagem é marcante no modo de narrar ou contar de J.P Sartre.
Tem um episódio que me chamou muito a atenção no livro "Com a morte na alma" em que o filósofo - homem das ideias - chega ao mais baixo do ser humano na guerra e usa uma arma para destruir outro homem e dar vasão a toda a amargura que sente.
É como se matasse a si mesmo no noutro. Como Sartre descreve isto que é magnífico.
Até parece que matei e morri naquela história.